Leitor típico da década de 70
Autor: Nelson Secchi
Nada mais óbvio do que falar em literatura quando se escreve para o site de uma Academia de Letras... Por isso, ocorreu-me escrever sobre o que teria sido o objeto de desejo de um leitor típico das últimas décadas do século passado! Anos 70, anos 80, anos dourados.
Em primeiro lugar, há de se falar no contexto social e político: o Brasil vivia em plena ditadura militar, e pensar de forma diversa e independente não era assim tão tentador. Havia uma certa “caça às bruxas” e a posse de um simples livro ou o uso de uma palavra inadequada, proscrita, poderiam provocar alguns incômodos aos mais pacatos cidadãos. A censura corria solta.
Como vivíamos os tempos da Guerra Fria, qualquer menção aos clássicos da literatura russa, poderia causar enormes dissabores ao desavisado leitor. Ler um Dostoiévski ou Tolstói, poderia parecer uma séria provocação contra a Lei de Segurança Nacional, uma possível adesão aos ideais soviéticos... É claro que o policial da época não queria saber se esses dois gênios da literatura russa tinham vivido nos velhos tempos da Rússia czarista ou se eram jovens revolucionários bolcheviques cheios de más intenções.
Para a sorte da Rússia e dos leitores do mundo todo, ambos os autores viveram e produziram bem antes da revolução soviética e tiveram seus romances imortalizados para sempre. Um leitor dos anos 70 não deixaria de ler os clássicos russos: Os Irmãos Karamázov e Crime e Castigo (Fiódor Dostoiévski), Guerra e Paz e Anna Kariênina (Lev Tolstói), Almas Mortas (Nikolai Gógol) e tantos outros escritores geniais. Como clássicos da literatura universal, alguns autores russos são verdadeiramente indispensáveis.
Os europeus
Na Europa, outros tantos clássicos e alguns mais modernos, também aguçavam o apetite do leitor brasileiro dos anos de chumbo. (E aqui cabe um esclarecimento: os anos dourados e os anos de chumbo foram as duas faces de uma mesma moeda. O vigor de uma juventude dourada enfrentava uma luta desigual contra uma ditadura de chumbo, onde haviam acertos e erros políticos de parte a parte!). Para começar com quem merece a primazia na Europa, tinha que haver uma passagem obrigatória pelo espanhol Cervantes, com seu Dom Quixote de la Manche, tido como o ato inaugural da história do romance ocidental.
Ainda na Europa continental, o alemão Thomas Mann, com o imperdível A Montanha Mágica, os italianos Tommaso di Lampedusa, com O Leopardo, e Umberto Eco com O nome da Rosa; os franceses Albert Camus, com O Estrangeiro e A Queda, Stendhal com O Vermelho e o Negro, Émile Zola com o Germinal, Marcel Proust com À Sombra das Raparigas em Flor e No Caminho de Swann. Sem contar os escritos engajados do casal J.P. Sartre (com sua obra existencialista e Simone de Beauvoir "O Segundo Sexo").
Nossos irmãos do Norte
O clima da época no Brasil não estava lá essas coisas para os autores de língua inglesa, mas qualidade é qualidade. Excetuados os já clássicos ingleses, irlandeses e escoceses (Shakespeare, Doyle entre outros.), o clima de guerra com o exército dos EUA tentando vencer a guerra do Vietnã não seduzia muito naqueles dias.... Mesmo assim, autores como Scott Fitzgerald (O Grande Gatsby), Arthur Miller (Morte de um Caixeiro Viajante), John Steinbeck (Ratos e Homens) e a premiada Pearl Buck com suas histórias vividas no oriente mobilizavam os leitores mais exigentes.
Apenas Ernest Hemingway (As Ilhas da Corrente, O Velho e o Mar, Por quem os Sinos Dobram) foi um caso à parte para o clima politizado da época. Teve um papel destacado naqueles tempos, nos meios literários, por sua postura meio latina, uma vez que chegou a morar em Cuba, viveu em Paris e lutou engajado na Guerra Civil espanhola. Obteve o merecido Prêmio Nobel de Literatura no ano de 1954.
O Prêmio Nobel que nós (ainda) não temos...
Vivíamos, nos anos 70 e seguintes, o boom latino-americano, e isso se refletia nas livrarias de então. O realismo fantástico do colombiano Gabriel García Márquez fazia história e seu mais badalado romance, Cem anos de Solidão, o projetava como um dos maiores escritores das américas. Igualmente memoráveis foram seus outros romances como O Amor nos Tempos do Cólera, Outono do Patriarca etc. Bem festejado foi seu Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
Também nosso vizinho e igualmente agraciado com o Prêmio Nobel de Literatura, embora mais tardio, no ano de 2010, o peruano Mario Vargas Llosa, amigo e, mais tarde, desafeto de García Márquez por questões políticas e ideológicas, teve uma profícua produção literária e ainda está ativo pelo que podemos acompanhar nos seus artigos reproduzidos pelo jornal El País. Suas obras como Conversa na Catedral e A Cidade e os Cachorros, entre outras, são imperdíveis. Para quem não sabe, ele é autor de um excelente romance ambientado no Brasil: A Guerra do Fim do Mundo, baseado na história (real!) da nossa saga de Canudos!
Los Porteños
Embora não tão citados na literatura como os argentinos, os intelectuais uruguaios marcaram sua presença nos anos 70, de modo especial como partícipes de nossas mazelas políticas...O nosso presidente Jango se exilou no Uruguai, Darci Ribeiro viveu e escreveu livros no Uruguai. Enfim, o Uruguai passou a ser, momentaneamente, um prolongamento de nossa pátria amargurada que lambia as feridas...
Mas um escritor uruguaio, especificamente, ganhou destaque por uma obra que é a mais pura radiografia do espírito da época: As Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano. Uma obra que o próprio autor, mais tarde, classificaria como um tanto panfletária, mas que fazia a cabeça da militância de esquerda de todo o continente. Ele escreveu também obras de ficção, entre elas O Vagamundo.
À parte Jorge Luís Borges, um símbolo da literatura argentina, o leitor brasileiro típico dos anos 70 não poderia deixar de ler Júlio Cortázar (O Jogo da amarelinha) e o crítico literário e talentoso romancista Ernesto Sábato com seu Sobre Heróis e Tumbas, uma síntese de toda a sua obra.
Subindo a cordilheira dos Andes encontraríamos o famoso poeta chileno, Pablo Neruda, que havia ganho o Nobel de Literatura em 1971, totalmente envolto nas escaramuças da revolta política que derrubou o governo Allende, em 1973. Confesso que vivi, foi a obra poética que iluminou sua longa noite do exílio Também de seu exílio na Itália, nasceu a inspiração para uma importante obra cinematográfica O Carteiro e o Poeta (Michael Radford), um sucesso nos cinemas do mundo ocidental.
Os brasileiros
Ler Jorge Amado e sua vastíssima obra era indispensável para os jovens da época. Menos engajado politicamente, Érico Veríssimo também tinha imensa influência na literatura de então. Os nordestinos da caatinga também estavam na moda: Raquel de Queiroz, Lins do Rêgo, Graciliano Ramos, só para citar alguns.
Guimarães Rosa, com Grandes Sertões, Veredas e Euclides da Cunha, Com Os Sertões, nos desvendavam um país profundo e ainda completamente desconhecido. Até da Amazônia começavam a aparecer os primeiros ecos, de modo especial a partir do então jovem escritor Márcio Souza com Galvez, o Imperador do Acre, e Mad Maria, a saga da construção da ferrovia Madeira-Mamoré.
São tantos escritores e tão variadas obras, que não dá para adotar um critério que não seja totalmente aleatório. A experiência do leitor, no fim das contas, é uma jornada totalmente solitária e o máximo que se pode querer, generalizando, é apontar uma tendência num determinado tempo e contexto.
Faltaria falar dos livros e autores da virada do século. Se os clássicos do passado foram bons, também tem muita coisa boa que apareceu nos últimos anos... que serão os clássicos do futuro! Falar sobre eles, uns duzentos livros imperdíveis só nessas duas décadas, demandaria um artigo tão longo e tedioso como este. Ainda bem que alguns leitores são bem generosos, pacientes!